Artigo publicado originalmente no DebianZine nº1
1. Sociedade de Competição
Quando Charles Darwin publicou em 1859 “A Origem das Espécies” consolidou-se a idéia da “Seleção Natural”[1]. Além do impacto conhecido em toda a biologia, a idéia de que a competição é o caminho natural da evolução foi incorporada pela sociedade moderna. A partir de então, a lei do mais forte tornou-se algo natural. Afinal, os bons, os que evoluem, são os que conseguem sobreviver em uma sociedade altamente competitiva. Aprendemos a competir nos esportes, competir por uma vaga na faculdade, um emprego, uma promoção, um lugar melhor ao sol.
2. Globalização
Quando a Tecnologia de Informação e Comunicação dá seu salto tecnológico com o rádio, satélites, fibra ótica e finalmente a World Wide Web, a competição se acirra e novas formas de negócio surgem. Surgem novas formas de “utilizar os recursos econômicos escassos”: mão-de-obra, tecnologia, matéria-prima e consumidores. Segundo Milton Santos[2], a competição no mundo globalizado foi marcada pela presença do capital financeiro: fusões de grandes empresas aumento do capital especulativo e desemprego.
3. GNU e colaboração
Na contra-mão da história surge, em 1984, o manifesto GNU[3]. Uma década depois, as primeiras distros começam a se erguer e a “Seleção Natural” é finalmente colocada em cheque. O importante para os adeptos do Software Livre não é apenas a qualidade ou o preço. Uma nova qualidade é colocada na mesa. O paradigma colocado é o da colaboração em oposição à competição. Bom é aquele que é criado de forma colaborativa.
4. Conhecimento livre
O Software Livre não precisa ser o melhor, embora ele seja em diversas áreas. Todos sabem que existem diversas lacunas a serem preenchidas. Mesmo assim, ele começa a substituir soluções tecnicamente superiores criadas no modelo de competição. Surge uma comunidade que descobre o prazer em ajudar ao invés de competir, jogar frescobol ao invés de tênis[4]. Então o Software Livre começa a criar um movimento que questiona muito mais que licenças e patentes de software. O surgimento de novas formas de licenciamento como a Creative Commons[5] criam aliados na música, na literatura e em diversos frutos do que começa a ser chamado de “Conhecimento Livre”[6].
5. Debian e GNU
No entanto, desde 1984 muita coisa aconteceu. Dentre os grupos que deram continuidade aos ideais GNU, o projeto Debian[7] é certamente um dos mais importantes. Ao produzir o sistema Debian, gastaram muitos neurônios discutindo como criar uma distro que fosse algo mais que uma distro excelente tecnicamente. Portanto, o usuário do Debian que não leu, deveria investir alguns minutos para ler seu Contrato Social[8].
6. As táticas do software proprietário
No entanto em meio ao duelo em competição e colaboração, parece que há um oceano inteiro para explorar. Mesmo o Mozilla atingindo o triplo de usuários em todo o mundo, eles ainda não significam 10% dos navegadores utilizados. A discussão sobre patentes e licenças está mais quente que nunca. Neste momento é sempre bom abrir os olhos. Uma preocupação clássica são as campanhas de FUD[9], mas quando uma empresa defensora do software proprietário começa a fazer pequenas concessões ao Software Livre, devemos nos policiar quanto a táticas muito mais perigosas, como o “Embrace and Extend”[10]. Aí, pior que os softwares proprietários são os padrões proprietários. Digo isto só para alertar que falar em Código Aberto e Software Livre não são a mesma coisa e partidários desta ou daquela corrente possuem grupos maiores por trás que assimilam ou rejeitam estas e outras terminologias descendentes.
7. Debian e Colaboração
É neste momento que o Debian me cativa. Primeiro por ser uma distro não comercial. Depois por ter projetos direcionados para usuários finais, o BR-CDD[11], e para o setor educacional, o Skolelinux[12]. No entanto, acho que o fundamental, para mim, é o modelo de desenvolvimento e a forma de agregar novos colaboradores. O projeto Debian é um projeto que agrega toda e qualquer pessoa disposta a colaborar[13], tem regras claras para seus desenvolvedores[14] e uma forma democrática de tomar suas decisões. Neste sentido, o êxito do Debian não pode ser avaliado somente pelo seu êxito técnico, mas pelo seu êxito em agregar novos colaboradores.
8. Educação e difusão
Então, ao utilizar o GNU/Linux, não fiz a opção apenas por uma ferramenta, fiz a opção por uma filosofia, e depois descobri que optei por uma comunidade. Quem assina a lista debian-user-portuguese[15] sabe que Software Livre é muito mais que troca de código-fonte, é troca de conhecimento. Nesse ponto, vejo todo o sentido em se discutir qual modelo de educação possui mais afinidade com o Software Livre. As pessoas que criam o Software Livre são, em primeira instância, aqueles que difundem seu uso. O fato é que, muitas vezes, encontro excelentes programadores com dificuldade em se comunicar com outras pessoas que não sejam também programadores. É óbvio que toda pessoa que utiliza computadores conhece as 7 camadas OSI e o que é uma consulta SQL, assim como seria um absurdo não saber a diferença entre uma linguagem compilada ou interpretada. Neste sentido, temos uma dura realidade pela frente. A maioria dos nossos hackers aprendeu informática passando incontáveis horas em frente a um monitor, lendo livros e documentações, navegando na Internet e trocando figurinhas com outros hackers. Vocês conhecem algum curso de informática que trabalhe de forma parecida?
9. Educação e Conhecimento Livre
O fato é que, quando pensamos em ensinar, muitas vezes, nos reportamos à forma como aprendemos em nossas escolas. São as mesmas que nos ensinaram a vida toda: a competir, repetir e copiar. Agora, queremos que as pessoas colaborem, critiquem e criem. Não podemos mais depender de receitas de bolo para conseguir executar a maioria de nossas tarefas com sucesso. É preciso aprender, apreender e aprender a aprender! Não basta conhecer todas as combinações de atalhos do VI, EMACS ou OpenOffice.org, é preciso entender como os processadores de texto funcionam. Não basta conhecer a sintaxe do C, Perl ou PHP, é preciso conhecer algoritmos e lógica de programação. Se não mudarmos a forma como ensinamos as pessoas a interagirem com o software, as pessoas migrarão sem se importar se ele é livre, aberto, proprietário, comercial ou seja lá o que for. O Software Livre abre, finalmente, a caixa preta. Não seria bom se as pessoas começassem a se questionar como ele funciona, como ele é feito?
10. Outro barbudo: “Paulo Freire”
Foi assim que descobri que o Debian tem afinidades com outro barbudo. Em 1996, Paulo Freire escreveu seu último livro antes de morrer. É um pequeno how-to para educadores. Chama-se “Pedagogia da Autonomia, Saberes necessários à prática educativa”[16]. Aqui, Paulo Freire mostra claramente a diferença entre treinar e educar. Não se trata de depositar toneladas de conhecimentos sobre o cérebro alheio. Trata-se de interagir com o conhecimento, desconstruí-lo e reconstruí-lo à sua maneira. A tarefa do educador não é a de revelar os segredos e mostrar o caminho da verdade e sim permitir que os outros descubram por si o caminho das pedras, inclusive construindo novos caminhos.
Em certos aspectos, a “Pedagogia da Autonomia” lembra muito o Contrato Social do Debian, fala que é necessário rejeitar qualquer forma de discriminação, ter rigorosidade metódica, consciência do inacabamento, etc. Se queremos que o Software Livre perdure, devemos fazer as pessoas acreditem no seu modelo de desenvolvimento, na sua importância e em suas vantagens para a sociedade. Para isso, não basta mais treinar usuários, programadores, administradores de rede etc. Como diz Paulo Freire é preciso compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.
11. Conclusão
Para aqueles que realmente acreditam na importância do Software Livre ou até no conhecimento livre, é imprescindível que mudemos nossa postura com os demais. Não se trata de uma cruzada contra esta ou aquela empresa de software proprietário, trata-se de acreditar numa nova forma de utilizar o conhecimento que nos foi transmitido de geração em geração por toda a existência da humanidade. O fato é que devemos olhar além do teclado e mouse. Colaborar, não é apenas codificar, é também ajudar e ensinar o próximo. Se não tomarmos alguns cuidados, poderemos ser engolidos por uma forma disfarçada de software proprietário num futuro próximo.
12. Referências
[1]http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Darwin
[2]http://www.fundaj.gov.br/observanordeste/ obex02.html
[3] http://www.gnu.org/gnu/manifesto.pt.html
[4] http://www.rubemalves.com.br/tenisfrescobol. htm
[5] http://creativecommons.org
[6] http://www.marketinghacker.com.br
[7] http://www.debian.org
[8] http://www.debian.org/social_contract
[9] http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/ artigos. asp?cod= 274ENO001
[10] http://www.gnu.org/philosophy/gpl-american-way.html
[11] http://cdd.debianbrasil.org/
[12] http://www.skolelinux.org/pt_BR/index_html
[13] http://www.debian.org/devel/join/
[14] http://www.debian.org/devel/join/newmaint
[15] http://lists.debian.org/debian-user-portuguese
[16] http://www.pazeterra.com.br/