O Terror dos Professores: O computador

Lembro-me de uma palestra do Sr. Sérgio Amadeu dirigida a um público de professores. Ele fez estremecer e até causou indignação na platéia com a famosa paródia do professor que vivia há mais de 100 anos atrás e se teletransporta para os dias de hoje. Ao ser colocado numa sala de aula ele reconhece os mesmos instrumentos de seu tempo: o giz e a lousa. Ele entra em sala e assume o controle como se nada houvesse mudado. É claro que a paródia é uma provocação, mas traz um fato curioso: a aversão de muitos professores à tecnologia na educação. Há um lado sombrio da tecnologia que a cada dia mais quer substituir a relação direta entre professor e aluno por máquinas. Isto não é de hoje. Na década de 60 o governo criava um programa de educação por rádio. O detalhe é que a intenção era alfabetizar adultos… você consegue imaginar um adulto analfabeto aprendendo a escrever só de escutar um programa no rádio? Depois vieram os Telecursos onde uma pessoa colocava uma fita num vídeo cassete para uma classe e ia embora. Esperava-se que a classe conseguisse aprender assim. Também não deu certo, é claro. Hoje as tentativas de educação a distância apostam todas as suas fichas na Internet e a onda da Web 2.0 . Se é bom ou não, o tempo vai dizer. Sei que as pessoas autodidatas aprendem via Internet participando de listas de discussão, IRC, lendo artigos e livros muito antes de toda essa moda. Mas a média da população não é autodidata. Na verdade, a média da população lê muito pouco e lê material de baixa qualidade. Não quero desmerecer as pessoas que gostam de ler “Bianca”, “Revista Caras” ou gibi da “Turma da Mônica”. A questão é que se trata de uma literatura que não convida o leitor ao raciocínio e apelam muito para imagens de pessoas e ações. Idéias, são artigos raros. Da mesma forma, a Internet reproduz esta pobreza intelectual da mídia impressa, televisiva e radiofônica.

Com um histórico desses, não é a toa que tantos professores tenham medo de tecnologia. Um dia um professor me disse: “Eu não tenho nada contra tecnologia, eu apenas continuo acreditando numa coisa chamada professor”. E esta é uma coisa fantástica. A relação professor-aluno e o efeito do conjunto é muito importante. Por mais que os nossos colegas hackers autodidatas se comuniquem frequentemente a distância, os eventos presenciais são sempre muito importantes. Assim sendo, mesmo para a nata dos intelectuais, mesmo entre os mais acostumados com tecnologia, o contato presencial é fundamental e valioso.

No Brasil, o buraco é mais embaixo. Este buraco vem de um longo investimento da delapidação da educação. Isto começou no auge da ditadura militar em 68 e o impacto disso levou décadas para ser percebido. Digamos que alunos e professores que gostavam que criticar o governo não eram bem vistos. Alguma coisa tinha que ser feita. E foi feito. Apesar disso, houve um notável avanço da educação no final da década de 80 sob a bandeira da “Educação pública, gratuita, laica, de qualidade com acesso e permanência para todos”. Foi um movimento de reação ao fim da ditadura militar. O ensino público foi universalizado no Brasil como direito de todos e um dever do Estado. Novas propostas de ensino saíram de pequenos grupos de ensino e ganharam as escolas públicas. Foi um período de grande efervescência no Brasil. Paulo Freire ainda vivia e foi reconhecido pela sua obra dentro do seu país natal.

Mas a década de 90 foi cruel para a educação. Enquanto se ampliava o atendimento público no ensino fundamental, o investimento na educação diminuiu constantemente ao mesmo tempo em que a obrigação do Estado com outras modalidades de ensino eram reduzidas. O chamado custo/aluno caiu drasticamente e o salário dos professores foi mais uma vez achatado. A nova pedagogia que ganhava força na década de 80 foi reformulada e implantada sem o menor critério ou preparação. Temas transversais, construtivismo e ciclos foram empurrados para os professores que a esta altura já tinham passado por um ciclo completo de degradação: tiveram eles mesmos uma má educação básica, uma má formação em nível superior, uma má formação continuada no local de trabalho, um péssimo salário e condições de trabalho muitas vezes dignas de um presídio. Com a implantação equivocada dos ciclos e a aprovação automática, o governo ganhou números espetaculares de atendimento e um consequente aumento no IDH. O número de alunos ingressando no ensino médio e depois no ensino superior explodiu. Os famosos supletivos se transformaram em universidades particulares da noite para o dia, com uma qualidade tão duvidável quanto a dos supletivos que eles mantinham. As universidades particulares cresceram tanto que parecem grandes shoppings da educação. O professor desta faculdade se tornou um elemento indesejável numa transação entre o aluno e a faculdade. A faculdade quer vender o diploma, o aluno quer comprar e o professor fica lá no meio atrapalhando ambos. E eis que surge a educação a distância melhorando a transação comercial onde o professor já quase não atrapalha mais!

Há alguns anos atrás eu recebi um convite informal para analisar os dados do SAEB. Eu gostaria de comentar extra-oficialmente algumas conclusões interessantes. A primeira é que o SAEB não serve como amostra estatística fidedigna, uma vez que a forma como os dados são coletados são ruins. Não é feita uma amostragem estatística (a mesma que fazem nas pesquisas eleitorais) o que gera uma enorme distorção. A forma como o questionário é criado e preenchido também gera inúmeros problemas. Em resumo os cruzamentos estatísticos revelaram inúmeros furos nos dados. Então o máximo que podemos avaliar são algumas tendências, mesmo assim frágeis sob o ponto de vista científico.

Houve uma tendência em particular que chamou atenção na época. Havia uma pergunta sobre cursos extracurriculares. A maioria das pessoas que fizeram cursos de línguas estrangeiras tiveram notas bem acima da média. Outros cursos extracurriculares também apontavam para uma pequena tendência de notas acima da média com apenas uma exceção: informática. Isso mesmo, as pessoas que faziam apenas cursos de informática tinham em geral uma nota abaixo da média. Não é curioso? Não é não… pense bem… não é tão difícil assim para um jovem aprender a utilizar os recursos básicos de um microcomputador moderno sem fazer um curso.
Acredito que 90% dos cursos de informática, mesmo os mais avançados, sejam destinados a pessoas com dificuldades de aprendizado. Dificuldades que surgiram na sua educação básica. Dificuldade em pesquisar, comparar, criticar, esquematizar, resumir. O que lhes foi negado em sua educação básica foi o que as teorias Paulo Freire mais proclamava em seus livros: a capacidade de aprender a aprender, o senso crítico e a capacidade de ação para a transformação da sociedade. A informática pode ser uma ferramenta fantástica para desenvolver estas qualidades, mas se estes não forem despertadas já no ensino fundamental, de nada servirá. Investimentos em laboratórios de informática nas escolas, OLPC, podem ser muito interessantes para estimular a economia, mas tem um impacto negativo na educação se não tiverem um projeto pedagógico forte, com professores bem remunerados, com boa formação, salas menos superlotadas, tempo de planejamento de aula, e por aí vai. Lembro-me de uma ONG que montou um laboratório de informática no meio de uma tribo indígena. Foi muito bom, despertou a atenção da mídia e a ação ganhou muito destaque. Mas, veja bem… qual o impacto disso para os índios mesmo?

Tudo isso para chegar no ponto de comentar esta pesquisa que afirma que os alunos que pesquisam no computador tem pior desempenho na escola. Curiosamente a conclusão foi obtida com os dados do SAEB. Longe de questionar o resultado da pesquisa, parece que os dados fazem muito sentido para mim. Já não bastassem todo o caos da educação, pública e privada, chega agora essa tal de Internet para sacanear o professor outra vez! Anos de aprendizado copiando ditados, livros didáticos e enciclopédias nos trabalhos escolares deram vez agora a Internet. Ficou estupidamente fácil copiar sem esforço. O trabalho mecânico ao qual os alunos foram submetidos por anos a fio substituídos por alguns cliques no computador. Há professores que ainda se julgam expertos e exigem os trabalhos manuscritos. Então os trabalhos não são copiados mais manualmente do livro para o papel, são copiados manualmente da tela do computador para o papel. Genial, não?

A verdade é que os professores com má formação e maus salários, tendo que dar aula em duas ou três escolas para sobreviverem, mal lêem os trabalhos dos seus alunos. Se para alguém isso ainda lhe parece novidade, pense apenas que corrigir um trabalho de um aluno dá muito trabalho. Ocorre que os professores recebem praticamente apenas para trabalhar na sala de aula. O tempo remunerado para a preparação de aulas e correção de provas e trabalhos é quase nulo. Ou seja um bom professor tem de ser um herói para dar uma boa aula. Agora percebam que o professor está sendo destituído de suas poucas armas: a reprovação e a cópia. É claro que os professores poderiam fazer uma busca rápida na Internet e verificar se o texto foi plagiado ou não. Ao ler um trabalho de um aluno que você julga conhecer, você sabe quando ele está copiando ou quando ele está escrevendo com as suas próprias palavras. Mas isso dá trabalho, exige que você leia, que tenha acesso e tempo para pesquisar na Internet. Acima de tudo, isto exige que você ensine seus alunos a escrever, e isso sim dá muito trabalho. Não é a toa que vemos tantos alunos analfabetos funcionais cursando o ensino médio e faculdades particulares e ainda tirando boas notas.

No nível superior, as coisas se complicam um pouco mais, pois a questão da validade da informação começa a pesar nos braços dos poucos professores sérios. Não seria inteligente rejeitar como fonte de pesquisa a Internet como um todo. Mas também não é possível credenciar qualquer página da Internet como fonte válida para uma pesquisa acadêmica. Está posto aqui mais um complicador inusitado na vida dos professores. É bem verdade que não é porque um texto está impresso num livro em papel, isto signifique que ele é absolutamente digno de confiança. É bem verdade que os estudantes das “UNIBLA”s e “Faculdades Tabajara” deixaram há muito tempo de lerem os autores tidos como “clássicos” para utilizarem abordagens mais pragmáticas como os livros didáticos, apostilas e outras obras pasteurizadas. Lembro-me que faculdade eu recebia no começo de cada disciplina a bibliografia. O professor separava o material que ele considerava relevante para o aluno, como bibliografia obrigatória e complementar. Não haviam apostilas, não haviam livros que resumem as idéias de vários outros livros. A Internet só vem agravar mais ainda esta falta de seriedade no ensino. Uma vez que o livro didático e a apostila são a base da leitura do curso, como desabonar a enxurrada de artigos encontrados na Internet? O mais complicado é que em meio a artigos muito ruins com erros conceituais gritantes, você encontra material muito interessante, num formato mais interativo como blogs e fóruns. A agora, o que fazer?

Apesar de ter carregado com cores fortes as palavras aqui, eu diria que o buraco em que nos encontramos hoje não é tão feio quanto o pintado aqui… é muito pior! Os projetos como o OLPC são muito interessantes. Respeito muito a idéia do Sr. Negroponte. Mas com os investimentos tão pequenos na educação, eu ficaria muito feliz em ver os meus impostos sendo canalizados para esta coisa antiquada e fora de moda chamada professor.

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